Faz alguns anos. Poucos anos. Era uma manhã de 25 de dezembro, dessas em que não há nada o que fazer e, como costuma acontecer quando não se precisa, a gente acorda cedo. Com a padoca favorita fechada, restava caminhar pelas ruas semi desertas e aguardar a hora do almoço. Que, obviamente, seriam as inevitáveis e incompreensíveis, pelas quantidades, sobras da ceia da véspera. Já não existia mais o gostoso hábito de visitar, naquelas manhãs modorrentas, as pessoas queridas, que não pudemos ver na noite anterior. 

A segunda escola

Quando ainda havia crianças em casa, havia a expectativa pelo almoço, não por ele, mas pela viagem que se seguiria. Dia 25, à tarde, era o dia de partir para a praia, dando início às férias de verão, que tomariam todo o mês de janeiro. Como vários casais amigos, e suas crianças, tinham a mesma rotina, a viagem era uma perspectiva de muita alegria e diversão, curtida antes, durante (já tá chegando, pai?) e, principalmente, depois. 

Foi neste cenário e neste dia que resolvi visitar, fisicamente, o meu passado. Uma viagem curta. Em menos de uma hora eu estava no marco zero. Estranhamente igual às poucas lembranças que eu tinha dele. De todos os lugares que eu viria a ver naquela manhã, era o que menos tinha mudado. Quase nada. Parecia ter ficado parado no tempo, durante mais de cinquenta anos, para que eu pudesse revê-lo com os olhos e a memória de um adulto quase velho. Assim, talvez, doessem menos as lembranças, mais ouvidas que recordadas ou sentidas. Velhos enxergam mal e lembram pouco.

A primeira escola e a casa dos índios

Alguns quarteirões adiante, outro lugar importante. Dali tenho a mais remota lembrança visual desses tempos. Sentado no chão cimentado de um quintal, uma criança entretinha-se, sozinho, numa manhã de sol. A imagem que guardo é de uma criança bem cuidada, num ambiente seguro e, naquele momento, alheia a tudo ao seu redor, a não ser o objeto de sua atenção, que não consigo visualizar. Esses poucos metros de distância entre esses dois lugares representaram mudanças tão importantes e definitivas, que parecia haver um oceano a separá-los.

A segunda escola

Um pouco mais distante, mas não mais que quinhentos metros, a casa de todas as lembranças. Dois leões guardando o portão de entrada. Uma casa grande, com um pequeno jardim na frente e um grande quintal no fundo, com plantas, árvores frutíferas e muito espaço. De lá, já lembro da rua. De terra, naturalmente, o que permitia tanto disputar aguerridas peladas, como jogar bolinha de gude, jogar pião e taco. A cada hora, e nem em todas, passava um carro, ou melhor, um caminhão de entregas. Carros, quase não havia naquela vila, como em todas as outras de periferia.

Brincar de trabalhar

Já escrevi aqui que nunca fui um menino de rua. Coisas de minha mãe. Mas, havia, sim, espaço e horário para brincar. Quase toda a família morando naquela vila. Tios, primos, agregados, amigos e vizinhos formavam uma rede de segurança e solidariedade, que não mais se repetiria nos muitos lugares por que passei. É possível dizer que quando mudamos daquela casa, terminou a infância. 

Marco zero

Estive, também, nas duas escolas onde estudei. Naquele tempo, não havia a pré-escola e comecei o primeiro ano do primário no velho grupo escolar de madeira. Ficava ao lado de uns barracos (ou barracas?) onde morava uma família de índios. Por sinal, o filho mais velho dessa família estudava na minha classe. Nunca lhe esqueci o nome: Arão. Tenho lembrança de um de meus primeiros dias de aula, caminhando, num dia de chuva, de alpercatas, levado pela mão por uma jovem professora, amiga da família.

Antes de iniciar o segundo ano ficou pronto o novo Grupo Escolar na outra ponta da rua. Novinho em folha. Moderno, espaçoso, muito bonito. Não havia quadra. O único esporte conhecido na vila era o futebol de campo. E, pasmem, no terreno de fundo do prédio, fazendo parte dele, havia um campo de terra, com traves e tudo. Um luxo. A escola funciona até hoje. Mais feia, mais trancada, sem o campo e sem alma.

Sumiram com os leões

Entre as aulas, os estudos em casa e as traquinagens de rua, ainda havia tempo de brincar de trabalhar. Brincar e aprender. De fazer contas, tomar conta da porta da loja, limpar e arrumar vitrines, empilhar caixas de sapatos e chapéus e decorar código de preços (que só nós sabíamos). E, mais que tudo, aproveitar a casa maior e mais bonita da vila, sempre cheia de gente, parentes ou não. Um clube quase particular com biblioteca e tudo. Poucos anos depois, este clube ficou ainda maior, mais cheio, divertido e bem localizado.

Repararam que todos esses lugares estão num raio de não mais que quinhentos metros? Pois é. Este era o meu horizonte naqueles tempos. Até os dez anos, raríssimas vezes ultrapassei esse espaço. Só nos picnics anuais para a praia do Gonzaga em Santos. Por muito tempo acreditei que o Sol nascia na Vila Curuçá e morria na Vila Jacuí. Foi um custo meu professor de Geografia, Prof. Edson, me convencer que não era bem assim. Acabei aprendendo essa e outras coisas. Muitas serviram e encantaram-me muito menos que as lições dos dez primeiros anos.

P.S. As legendas das fotos indicam o que os olhos do autor viram nos lugares em que voltou. O que o leitor vê é a situação atual de cada lugar.

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