Outro dia, Elena escreveu aqui mesmo no “Outros Olhares”  www.outrosolharesblog.com.br/em-defesa-da-imprensa sobre a perseguição que o jornalismo profissional e responsável vem sofrendo de uma parcela expressiva da população brasileira, instigada por políticos e grupos radicais. Diria até, infelizmente, que essas facções, nos dias de hoje, representam a maioria dos cidadãos e que só não conseguem fazer estragos maiores, porque o poder econômico e o alcance dos grandes grupos da mídia profissional conseguem contrapor-se a esse radicalismo militante. Preocupante, desolador, perigoso, mas isso não é tudo.

Mais inquietante é constatar que os ataques à imprensa são parte de algo maior: o cerco à Arte e à Cultura, nessa última incluída, pasmem, a Ciência. Um fenômeno relativamente recente, que pode ser situado, grosso modo, nos anos iniciais deste século. O crescimento do neonazismo e do neofascismo na Europa foi o estopim desse movimento de herdeiros de Goebbels, aquele que disse: “quando ouço falar em cultura, saco logo meu revólver”. A sólida e culta Europa soube controlar, em parte, seus radicais. Deu-lhes alguma participação política, até chegaram próximos ao poder em países menores, mas pouco a pouco se recolhem ao seu lugar de insignificância.

Não foi o que ocorreu aqui e nos EUA. O fenômeno demorou um pouco mais a chegar, mas chegou mais forte, mais disseminado na sociedade e com líderes populistas muito identificados com uma horda enorme de ressentidos e marginalizados. Alguns ressentidos com o declínio financeiro causado pelas movimentações globais de indústrias de bens e de serviços ou pela queda das aposentadorias, forçada pela pressão demográfica. Outros atingidos na perda de seu papel hegemônico na sociedade com o crescimento dos movimentos em favor das minorias; e, por fim, os marginalizados, ou descartados, por uma sociedade consumista e hedonista. Não são grupos excludentes entre si. Ao contrário, indivíduos transitam e estacionam em um ou mais desses mesmos grupos.

Não lhes cabe, exclusivamente, a culpa por esse cenário. Houve políticas de direita e de esquerda que conduziram ao atual estado de coisas: o liberalismo de Reagan e Thatcher, a ascensão da China, o esgotamento das ditaduras socialistas, a predominância do capitalismo financeiro, a fuga da miséria e da violência causada por conflitos locais e regionais gerando milhões de refugiados. Quem melhor escreveu sobre esses fenômenos dos tempos recentes foi Zygmunt Bauman, sociólogo polonês falecido em 2017. Vale a pena visitar suas obras.

Diante desse infortúnio, a primeira medida é procurar bodes expiatórios e os que estavam mais à mão eram os artistas, os intelectuais e os cientistas. Como sua produção, em grande parte independe de localização e muitas vezes até de consumidores, assim como por sua atávica aversão a qualquer ordem ou verdade absolutas, esses artesãos se transformaram na “Geni” dos ressentidos e deserdados. Tornaram-se os culpados por propagar a nova ordem que os oprimia e os relegavam, quando,na verdade, os artistas, intelectuais e cientistas retratavam uma era criada por políticos, patrocinados pelo capital financeiro, eleitos por essa mesma multidão.

Sempre desconfiei dessa estória do “brasileiro cordial”. Sergio Buarque de Holanda foi mal interpretado, mas, agora, as coisas chegaram a um ponto de hostilidade e beligerância, que beira, com algum exagero, à guerra civil. Os brasileiros sempre amaram seus artistas. Quando não amavam, respeitavam.  Mesmo quem detestasse a bossa nova, sempre referia-se  ao “Maestro Tom Jobim”. Quando Tom disse que “no Brasil, o sucesso era quase uma ofensa pessoal” não reclamava do povo e sim de alguns jornalistas ranzinzas. Mesmo o mais radical abstêmio achava graça na irreverência de Vinicius. Chico era unanimidade nacional; Fernanda era nossa diva; as famílias brasileiras davam 90% de audiência para as novelas da Globo. O que mudou?

Será a Lei Rouanet? Mas, ela é de 1991, criada no Governo Collor. Tem defeitos? Tem. Quem decide onde aplicar o dinheiro da renúncia fiscal são as empresas e estas preferem associar sua marca aos grandes nomes. É só isso que ela faz? Não. Há inúmeros museus no país inteiro, restaurados e mantidos por recursos desta Lei. Há pequenos projetos e festas populares bancadas por ela. Dá para aperfeiçoar a Lei? Claro, sempre há o que melhorar.

A maioria dos artistas é de esquerda. E daí? Eu ouço Bethânia cantando ou declamando e me delicio. Se ela começar a discursar, mudo de canal ou saio do teatro, coloco um disco dela na “vitrola”, abro uma cerveja e continuo nas nuvens. A Globo distorce as notícias? Às vezes, eu não vou deixar de ver a Ana Tolerman  e a Andréia Sadi só porque não consigo pensar com minhas próprias ideias e não desenvolvi, apesar da longa idade, meu senso crítico.

O mundo enlouqueceu ou eu? Por vezes, penso que talvez fosse melhor desistir de pensar e me deixar levar pela corrente. Preservaria grandes amigos de uma vida inteira. Não me agrada pensar igual a 89 ganhadores do Prêmio Nobel, favoráveis à vacina, ao uso da máscara e ao distanciamento social e contrários à cloroquina, se o preço é perder um único amigo. A vida é muito curta para tamanhos desatinos.

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