Sim, existe racismo no Brasil. Seja ele estruturado, institucional, velado, escancarado, regional, pessoal ou qualquer outra adjetivação, não muda o fato concreto de sua existência e de suas consequências. Também é verdade que os negros, em sua grande maioria, ocupam a base da pirâmide social e que, queiramos ou não, essa condição é herança do período escravagista.
Já sabemos o suficiente sobre a inexistência de políticas públicas no período pós Abolição, na Monarquia e na República, que tratassem da inclusão da massa de libertos e seus descendentes na vida nacional em seus aspectos sociais, educacionais e econômicos. Portanto, há de fato uma dívida social a ser resgatada pelo país em relação aos negros, sem desconsiderar que essa dívida se estende, também, aos indígenas e brancos pobres. Por sinal, branco pobre no Brasil, passou a ser chamado de pardo, o que permitiu sua inclusão nas necessárias, importantes, bem vindas e recentes, do ponto de vista histórico, ações afirmativas.
Entretanto, essas verdades absolutas, em minha opinião, não absolvem os movimentos negros de alguns de seus erros na condução da luta contra o racismo e a desigualdade histórica. Faltam ao movimento negro organizado as características de coordenação, coesão, diálogo e ambição. Para uma tarefa de tamanha magnitude ─ a correção de desvios acumulados há séculos ─ é necessário muito mais que boas intenções e disposição para a luta.
Organização e coesão significam lideranças e instituições reconhecidas, confiáveis e capacitadas a criar uma pauta permanente e progressista para o avanço das demandas da sociedade negra. Ao invés da permanente e, por vezes, necessária confrontação, que é quase sempre insuflada por episódios pontuais – embora não sejam pontuais as ocorrências de agressão aos seus direitos ─, é preciso que o movimento negro, também, aja institucionalmente, buscando a modificação “por dentro” de um sistema político e econômico que lhes é francamente hostil. Existem iniciativas nesse sentido, mas individuais ou de pequenos coletivos sem expressão dentro seu próprio grupo racial.
Diálogo especialmente dentro da própria sociedade negra. Quem olha de fora o trabalho dos movimentos negros imagina que todo negro é de esquerda. Não é bem assim. Existem negros de direita ─ não me refiro a reacionários negacionistas como aquele moço da Fundação Palmares ─, o que é absolutamente normal, que também querem maiores direitos para sua raça. A mínima coordenação entre esses dois pólos aumentaria a eficácia das ações contra o racismo e daria maior representatividade à luta. Também, ajudaria que se fomentasse o diálogo com os adversários, ou seja, que o diálogo não se restrinja à parte branca da sociedade, que já abraçou a luta contra o racismo e a desigualdade. Pregar para os convertidos é tarefa fácil. O trabalho deve ser inspirado em São Paulo, o criador do Cristianismo: é preciso buscar novas almas e novas ideias.
Ambição, também, tem faltado ao movimento negro. Cito como exemplo a Conferência da Liderança Cristã do Sul (SCLC) fundada nos EUA nos anos 50 do século passado por Martin Luther King. A SCLC, além de inúmeras e contínuas manifestações e ações antissegregacionistas, trabalhou arduamente em seu próprio grupo racial para conscientizar, engajar, educar e organizar as bases de uma futura sociedade negra próspera e livre.
Os negros são quase 50% da população brasileira contra 13% nos EUA. Sempre tivemos no Brasil uma importante elite intelectual e cultural negra, que embora não tão numerosa quanto deveria, tornou-se um dos pilares construtores da identidade nacional. De José do Patrocínio, André Rebouças e Luiz Gama; de Pixinguinha, Sinhô e Cartola; de Milton Santos, Abdias Nascimento e Sueli Carneiro; de Grande Otelo, Ruth de Souza e Milton Gonçalves; de Jair, Gil e Milton; de Adhemar Ferreira, Pelé e Dayane, entre tantos outros.
O que falta então? Faltam homens e mulheres negras que sejam médicos, advogados, economistas, engenheiros, arquitetos, CEO`s, CFO`s, etc. enfim uma elite profissional e corporativa que, por meio de sua atuação, abra caminhos e sirva de exemplo para jovens e crianças, que não precisem sonhar apenas com o futebol e a televisão para serem reconhecidos. Fico pasmo ao contatar que, decorridos todos esses anos de uma existência nem sempre saudável, jamais fui atendido por um médico negro. Ë possível contar nos dedos os engenheiros, economistas e executivos negros com quem convivi numa longa carreira corporativa.
Como mudar esse estado de coisas? O movimento negro deve lutar para além das cotas raciais. Entre outras importantes demandas, lutar pela criação de universidades que disponibilizem, prioritariamente, esses cursos chamados “nobres” para seus jovens, ou seja, mais universidades Zumbi dos Palmares, turbinadas com verbas públicas e privadas e com maior leque de cursos de todas as áreas. Sair do casulo das Ciências Sociais, onde se concentra a maioria dos estudantes e intelectuais negros, e buscar as atividades de melhor remuneração, o que levaria a criação de uma classe média negra, com reflexos no aumento da representatividade política e econômica, porque são nesses campos que as mudanças acontecem com maior rapidez e eficiência.
Se é absoluta verdade de que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, também, é verdade que o movimento negro precisa abrir-se para novas ideias de integração e de lutas institucionais.