Lidar com palavras para uns é ofício e pão; para alguns, lazer e prazer; para outros, catarse e libertação e para todos, a mais importante e útil das capacidades que a Evolução (ou o Criador) nos proporcionou. A destreza manual e a capacidade de caminhar, por longos períodos, sobre duas pernas, por certo, nos distinguem de outros animais, mas é a linguagem, ou em sentido estrito, a palavra, que nos torna únicos e especiais em todos os cinco reinos da Natureza, ainda que a linguagem não seja exclusividade de nossa espécie.

Máquinas podem pensar e até conversar entre si. Animais, além de se comunicarem, podem, a seu modo, sentir, sorrir e chorar. Plantas respiram e sabem reconhecer o tempo. Para alguns, elas até falam. Como nós, as máquinas e os animais podem, com limitações, ter raciocínio lógico, linguagem e memória. Entretanto, falta-lhes a pedra de toque de nossa existência: consciência e raciocínio abstrato. A Ciência ainda não descobriu, com exatidão, em que parte, ou em quais, de nossos 85 bilhões de neurônios, estão situadas essas maravilhas. Há muito o que se descobrir sobre a origem da consciência e de nossa capacidade de abstração. O mistério abre espaço para as mais diversas explicações e interpretações científicas, filosóficas e religiosas.

Consciência, segundo Descartes, é o fundamento e modelo de todo o conhecimento. Através dela nós, humanos, sabemos que existimos. Mais ainda: que somos, também, uma coisa pensante, uma alma (ou consciência?) separada do corpo. É bastante improvável que um cavalo saiba que é um cavalo e é certo de que não se vê além do corpo.  Raciocínio abstrato, por sua vez, é um exercício hipotético-dedutivo, que nos permite construir hipóteses sem a necessidade de testes empíricos; alternar e comparar ideias e situações; imagina, criar e inovar.

Independentemente das definições, e elas são muitas, não resta dúvida de que consciência e raciocínio abstrato deram aos humanos a vantagem competitiva que nos trouxe ao topo da cadeia evolutiva. E assim o fizeram enriquecendo a linguagem, porque a ampliação do vocabulário expande a consciência, modificando a maneira como entendemos e processamos nossas experiências. Não por acaso, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein escreveu: “Os limites de minha linguagem denotam os limites do meu mundo” 

Na Arte e na Ciência, assim como na Vida, o concreto e o abstrato se juntam para construir o humano. Um quadro de Da Vinci tem a concretude da moldura, das formas, das medidas e das tintas. As sinfonias de Beethoven, como todas as músicas, é composta da combinação de sons e silêncios e sua divisão em intervalos de tempos, elementos essencialmente concretos. A observação do Universo por poderosos telescópios, as imagens geradas e os gráficos produzidos são, igualmente, coisas físicas e palpáveis. A temida morte, concreta no ato e na certeza, é um exemplo de como a Vida, também, se movimenta, em toda sua trajetória, pela conjunção dos conceitos de concretude e abstração.

Ao deparar-se com o quadro “A Última Ceia”, ouvir a “Nona Sinfonia”, ver as imagens dos anéis de Saturno ou perder um grande amigo são os pensamentos abstratos, em que se incluem o que chamamos de sentimentos, que tentam nos explicar as origens, as razões e os sentidos (significados) dessas obras e acontecimentos. Nessas situações, tanto na criação como em seu impacto, está presente, também, a consciência, que nos permite percepções individuais, muitas vezes distintas, por isso mesmo, enriquecedoras e, sobretudo, humanas. 

A aventura da Humanidade, ao longo de milhões de anos, foi construída sobre o tripé concreto Arte, Religião e Ciência (para os esquecidos: Filosofia é ciência, hein) e sobre seu congênere abstrato Sentimento, Fé e Razão. Nada disso teria se desenvolvido, nem se perpetuado, sem a linguagem e sem as nossas indispensáveis, eternas e perigosas companheiras: as palavras.

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