AUTOR: Salvattore Giovannucci

Sobre o autor:  Salvattore Giovannucci, filho de imigrantes italianos, nasceu em  São Paulo, cidade que ajudou a construir e fazer gigante. Depois de sua participação na Revolução de 32, exerceu os ofícios de mestre carpinteiro, artesão e pizzaiolo, aposentando-se em 1987 como cobrador de ônibus. Recebeu, no ano de 1962,  a “Medalha da Constituição”, a maior honraria civil e militar do Estado, além das medalhas conquistadas durante os combates. Aos 103 anos, orgulha-se de ter caminhado dois quilômetros até a UBS de seu bairro para receber as duas doses da vacina contra a COVID 19.

Eu nasci no dia 23 de maio de 1917, na zona leste da Capital. Minha família morava na Rua do Brás, que hoje se chama Rangel Pestana. No dia do meu aniversário de 15 anos, eu e meu primo Caetano, depois das aulas no Instituto Profissional Masculino ali na Rua Piratininga, resolvemos caminhar até o centro da cidade.  Percurso de pouco mais de meia hora, a que estávamos acostumados. Ao chegar na Praça da República, notava-se o clima de tensão entre a multidão que circulava  pela praça e pelas ruas do entorno. Lembrei da noite anterior , o comentário de meu pai,  operário e imigrante de Massa-Carrara, no norte da Itália, veterano das greves  e revoltas ocorridas na cidade entre 1917 e 1924. Anarquista convicto, o velho Guido reclamava, aos berros e gesticulando muito,  de quem ele chamava de “gaúcho baixinho, ditador de m……”. 

Naquele ano o clima político estava pesado. São Paulo reivindicava, desde 1930,  uma nova Constituição e um governador (não um interventor) paulista e civil, que pudesse dar continuidade ao seu predomínio político e econômico dos tempos da política do café com leite. Mesmo havendo muitos paulistas, que apoiavam o governo federal, as elites do estado, as mais prejudicadas pelos novos tempos, souberam utilizar o patriotismo das pessoas do povo para alinhá-las aos seus interesses.  

Por volta das seis da tarde começou o comício dos antigetulistas. Foi quando, o Caetano encontrou um amigo, que morara algum tempo no Brás, o Dráusio. Era da nossa idade. Depois vim a saber que ele era de 1917 como eu. Ficamos os três ouvindo inflamados discursos até o final, quando uma multidão resolveu rumar para um prédio da Rua Barão de Itapetininga, sede da Liga Revolucionária, apoiadora de Getúlio. Com sua sede prestes a ser invadida, os que ali estavam reagiram com tiros de revólveres e fuzis disparados contra a multidão. Tumulto generalizado, a polícia do interventor varguista omissa, e, ao final, um monte de gente caída no chão em meio a muito sangue. Puxei o Caetano para fugirmos dali. Ele veio, mas trazendo o amigo amparado nos ombros. Dráusio levara um tiro no abdômen. Conseguimos arrastá-lo até uma farmácia na Rua Dom José Gaspar. De lá, foi para a Santa Casa, onde morreu cinco dias depois.

Naquele noite, morreram, também outros três estudantes, Martins, Miragaia e Camargo. Em meio à comoção popular pelas mortes, foi criado o movimento MMDC, letras iniciais dos nomes dos quatro mártires (hoje é MMDCA, por causa do Alvarenga, baleado naquela noite, mas que morreu cinco meses depois). Este movimento deu inicio às manifestações, que culminaram na eclosão da Revolução Constitucionalista no dia 9 de Julho de 1932. Todo o estado se mobilizou para enfrentar o governo federal. Fábricas, escolas, sindicatos, associações, hospitais, policiais, oficiais do Exército e muitos voluntários. Eu, que assistira o massacre do dia 23 de maio, não podia ficar de fora dessa luta. Sem dinheiro e sem ouro para doar, falsifiquei meus documentos, e com quinze anos, me alistei nas forças revolucionárias. O velho Guido ficou muito bravo na época, mas passou o resto da vida contando, orgulhoso, a participação do filho na “guerra”. 

Nos oitenta e quatro dias de combates, passei por Pouso Alegre, Cruzeiro, Piquete e Cunha. Enfrentamos tropas mineiras e gaúchas, cujos governadores tinham nos prometido apoio contra Vargas. Traídos e cercados por todos os lados, minha companhia conseguiu chegar a Campinas em meados de Setembro. Justamente, quando aviões do governo federal bombardearam a cidade e a população civil durante angustiantes quinze dias. No dia 18, abrigado num depósito da Estação Ferroviária, consegui arrastar Dona Ada Chioratto para longe das bombas, afastando-a do corpo de seu filho Aldo, um escoteiro de 9 anos, morto pelas bombas.  Foi , para mim, a cena mais dramática daquela revolução. Dela jamais esqueci. Abriria mão de todas as condecorações para não ter vivido aquele momento.

Ainda que derrotados nos campos de batalha, os paulistas lograram êxito em forçar Getúlio a convocar a Assembléia  Constituinte, matriz da Constituição de 1934, que trouxe o voto secreto, o ensino primário obrigatório e gratuito e a Justiça do Trabalho, além de incorporar o voto feminino, que havia sido conquistado em 1932.

Orgulho de ser paulista. Orgulho de ser combatente veterano de 1932

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Humberto Mariano
Humberto Mariano
2 anos atrás

Seu Salvattore é uma figura extraordinária.

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