Enviado pelo autor: Daisy Mazzaro
Sobre o autor: Professora, graduada em Pedagogia pela Universidade Cruzeiro do Sul, com especializações em Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes (Universidade de São Paulo) e em Educação Especial – Deficiência Mental (UNICSUL). Dedicou 39 anos de sua vida ao Magistério, sem descuidar do apreço e carinho pelas Artes, pelos inúmeros amigos e, sobretudo, pela família, seu bem maior. Sensível contadora de histórias, revela-nos aqui, para nossa alegria e emoção, um pouco de sua alma e de suas lembranças.
Garanhuns cidade serrana,
Garanhuns cidade jardim,
Garanhuns cidade das flores de amores sem fim.
Garanhuns, terra de Simôa,
Garanhuns, que terrinha boa…
Garanhuns onde o nordeste garoa.
Início dos anos 50. Enquanto Dona Amélia cantarolava esses versos de Luiz Gonzaga, seu José Bião caminhava pensativo pelo quintal da casa. Pensava na mulher, nas crianças e no futuro de todos. Garanhuns não era um lugar ruim. Pelo contrário, era uma cidade agradável, não tão pacata, mas em franco progresso e, na época, a sexta cidade de Pernambuco em população. Vinte mil almas, vivendo numa cidade conhecida como a “Suiça Pernambucana”, que já dispunha de bons colégios como o Diocesano, o XV de Novembro Prebisteriano e o Santa Sofia. Dois jornais ─ “O Monitor” e o “Diário de Garanhuns”─, que juntos com a recém inaugurada Rádio Difusora, traziam as notícias de todos os cantos do mundo. O prefeito Celso Galvão e o Bispo Dom Juvêncio de Brito eram as autoridades máximas da cidade. Política e Igreja andavam juntas como, aliás, em todo o Brasil da época.
Amélia e José Bião eram meus pais. Brasileiros, formados na lida, na árdua batalha diária pela vida, representavam o típico nordestino imortalizado pelo genial Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Foi com essa força, aliada a uma vontade férrea de proporcionar melhor futuro a seus filhos que, ambos, tomaram a mais difícil e importante decisão de suas jovens vidas: deixar sua terra e percorrer quase dois mil quilômetros até São Paulo. Uma exaustiva viagem de quinze dias num “pau de arara”, então o único meio de transporte acessível para os milhares de migrantes, que faziam o caminho Norte-Sul em busca de oportunidade e, em alguns casos, até de sobrevivência.
Desembarcamos em Álvares Machado, pequeno município próximo a Presidente Prudente. Ficou claro que aquele ainda não era o sonho de meus pais. Cidade pequena, sem o tamanho e o progresso de Garanhuns, foi apenas uma etapa da jornada. O próximo e definitivo passo veio em seguida: rumar para a cidade de São Paulo, a terra das oportunidades, a cidade que não parava de construir prédios e avenidas, abrir lojas, implantar indústrias e, principalmente, oferecer empregos. Chegamos e nos estabelecemos no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo, iniciando, assim, a minha epopeia paulistana.
Tinha dentro de mim alguns sonhos e teimaria, ao longo da vida, em realizá-los um a um. Contava com o apoio da família e a certeza de que tudo era possível. O curso primário, concluído no Grupo Escolar Armando Gomes de Araújo, ainda em salas construídas em madeira, foi o primeiro passo, do qual parti para outras conquistas e aventuras. Sim, naqueles tempos chegar ao Ginásio (hoje quinta á nona séries do Ensino Fundamental) era mesmo uma aventura, no sentido de ousada e difícil. Eram poucos os brasileiros que ultrapassavam o ensino primário. Poucos e privilegiados. Eu não iria perder essa oportunidade.
O primeiro obstáculo: embora tivesse concluído com mérito e com direito à medalha, o curso primário, as dificuldades financeiras da família não me permitiram, de imediato, seguir adiante. Logo que elas foram vencidas, ou melhor, diminuíram, retomei meu caminho. Voltei ao mesmo Armando, cursei o SESI e acreditei estar pronta para realizar o meu grande sonho até aquele momento. Iria tentar uma vaga em um dos mais prestigiados e famosos colégios, não apenas da região, mas de toda a cidade de São Paulo: o Ginásio Estadual Francisco Roswell Freire, em São Miguel Paulista. Não era apenas o prestigio do colégio que me atraía. Sua arquitetura moderna, contemporânea e parecida com a dos prédios da jovem Brasília, me faziam sonhar. Imaginava-me subindo e descendo aquelas rampas, ocupando aqueles espaços imensos, os jardins, as salas, convivendo com aqueles meninos e meninas, que como eu, sonhavam com uma vida e um Brasil melhor.
A frustração da reprovação no exame de seleção doeu. Chorei muito, mas resolvi que iria tentar de novo e melhor preparada. Eu era jovem e tinha dentro de mim todos os sonhos do mundo (olha aí, meu poeta Fernando Pessoa). Passei um ano estudando duro no curso preparatório – o Sud Menucci, da família Dottori. No fim do ano, a grande alegria: a aprovação e o ingresso na escola de meus sonhos. Dali em diante, dependeria só de mim e eu estava pronta. Então, foram sete anos de muito estudo e dedicação no colégio, que, nesse período, mudou sua denominação para Dom Pedro I. Anos, também, de muita alegria, diversão e aprendizado com mestres e amigos inesquecíveis. Para minha felicidade, alguns ainda estão bem perto de mim. Outros, guardei no coração e, também, vivem comigo.
A feliz criança, que um dia eu fui, ainda vive em mim. No orgulho de minhas raízes, na doce lembrança de meus pais, dos seus sacrifícios e da confiança que sempre tiveram no destino de todos nós. Procurei passar aos meus alunos e, em particular, aos meus filhos, essa herança de determinação e vontade que eles me legaram. O nome disso: A Magia do Querer.