Há alguns anos, eu ainda sustentava que nos meus tempos de menino havia pobreza, mas não havia a miséria. Que esta só se tornou uma presença real na paisagem social brasileira a partir dos anos 80. Era uma visão estreita e primária, provavelmente, influenciada pela experiência pessoal de vida simples, mas sem carência das necessidades básicas de alimentação, educação, saúde e habitação. Uma situação que, no meu limitado campo de observação ─ família, grupo escolar, programas de TV e vizinhança ─ parecia ser compartilhada pela maioria dos brasileiros.

Para tentar me desculpar pelo erro, especialmente, se considerada a formação em Economia, jogo parte da culpa nos currículos dos cursos de Ciências Sociais e Humanas dos anos 70. Havia assuntos e obras proibidas, que fizeram falta na construção do pensamento econômico de toda uma geração. As exceções estavam, exatamente, nas universidades públicas, onde grupos de alunos e professores resistiram à censura e às arbitrariedades e mantiveram acesas as discussões sobre os temas sociais e suas repercussões na economia do país. Mas, a maior parcela de futuros economistas, assim como de engenheiros, médicos, advogados e outros profissionais, vinham de faculdades particulares, que não tinham outro interesse senão o faturamento e a subserviência ao governo, que lhes garantia expansão quase ilimitada, sem qualquer preocupação com a qualidade. Mudou pouco desde então.

Agora, com toda uma extensa bibliografia disponível e a observação em tempo real do Brasil e do mundo, é possível afirmar: a miséria está presente no Brasil desde sua formação e vem sendo agravada, historicamente, por ciclos de exploração, iniciados no regime colonial com sua maior chaga, a escravidão. A Abolição e a República não foram capazes de mudar o pavoroso quadro social brasileiro. Ao contrário, os problemas sociais foram agravados pela massa de escravos liberta, deixada à própria sorte, sem qualquer política pública, que lhes permitisse maior inserção no mercado de trabalho livre e acesso à educação.

Não era melhor a situação dos brancos e mulatos pobres. Nas zonas rurais, analfabetos e desnutridos, os camponeses mal chegavam aos cinquenta anos, enquanto os índices de mortalidade infantil beiravam a um genocídio. Nas zonas urbanas, onde o quadro parecia ser melhor, expandiam-se as favelas, as sub-habitações, as doenças infecciosas e o analfabetismo. Passados 199 anos da independência, 133 da abolição e 132 da República, é justo reconhecer que os indicadores sociais melhoraram. Entretanto, mais urgente e necessário, ainda, é afirmar que melhoraram muito pouco; que persistem em todo o Brasil bolsões de miséria extrema, em nada diferente daqueles que vemos nos países africanos da região subsaariana, a mais pobre do mundo.

A raiz profunda dessa miséria secular é a desigualdade na distribuição de renda e de oportunidades. Poucos países no mundo ostentam uma concentração de renda tão obscena quanto à brasileira. O modelo colonial de capitanias hereditárias deu origem às grandes riquezas e latifúndios, que trezentos anos depois, daria impulso à industrialização, até que chegássemos, como ocorreu no mundo inteiro, à supremacia dos serviços financeiros, em outras palavras, o Deus Mercado. Em todo esse processo, o dinheiro e o poder ficaram concentrados em número limitado de famílias e indivíduos, que indiferentes ao regime político vigente, sempre abocanharam a maior fatia do bolo. Aos demais, quase noventa por cento da população restam as sobras e entre estes, os mais vulneráveis, ficam praticamente sem nada.

Essa imensa maioria de brasileiros, mais recentemente chamada de invisíveis, apenas sobrevive. Por algum tempo, alguns ainda conseguem manter-se acima da indigência, mas basta um solavanco qualquer na economia, e voltam à sua condição secular de miséria e escassez. É o que vemos agora com a pandemia da COVID 19. Em poucos meses, as calçadas, marquises e baixos de viadutos, que já estavam cheias, atingiram lotações máximas. Privados de seus empregos e ocupações formais ou informais e despejados de suas casas, milhares de pessoas não tiveram outra opção senão a rua e a mendicância. 

As cenas de horror e vergonha se sucedem diuturnamente nos telejornais: panelas e despensas vazias, filas para receber doações da refeição do dia, a busca por cestas básicas, casas às escuras e ruas de bairros centrais e periféricos coalhadas de tendas, barracas e famílias. Não nos iludamos. Passada a pandemia, e ela há de passar, vão diminuir essas cenas. Nossos olhos, novamente, se desviarão da incômoda visão de pais e mães vasculhando lixeiras, rodeados por suas crianças fora da escola e do futuro. Entretanto, esses brasileiros vão continuar existindo e suas condições encherão de vergonha e indignação, ao menos, a parte da sociedade, que se mobilizou nesses últimos meses para minorar seu sofrimento e dor. 

Castro Alves, no canto V de “O Navio Negreiro” já se perguntava: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura……se é verdade tanto horror perante os céus?”. 

Eu ousaria perguntar: Até quando, meu Senhor?

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