Crédito: Luiz Paulo Machado – Revista Placar 1976

Andei olhando na hemeroteca da Biblioteca Nacional (bnbdigital.bn.gov.br) os jornais do dia 23 de outubro de 1940. Encontrei coisas interessantes, tais como as notícias da guerra: o Brasil ainda neutro, os EUA apoiando os Aliados sem enviar tropas, a França ocupada, Londres sob bombardeios, Stalin e Hitler empenhados em repartir a Polônia e a Alemanha marchando, célere, sobre a Europa continental. Os jornais de Rio e São Paulo, também, comentavam o estrondoso sucesso de bilheteria de “E o vento levou”, que estreou por aqui em setembro daquele ano.  As luxuosas salas dos cines Metro das duas cidades ─ de propriedade da americana Metro Goldwyn Mayer para exibições, exclusivamente, de filmes desse estúdio ─ lotavam em todas as sessões e as filas dobravam quarteirões dos requintados, na época,  centros das duas cidades.

Naquele dia, nos jornais, não havia nenhuma notícia sobre nascimentos plebeus ou reais e, tampouco, sobre a cidade de Três Corações, que nem jornal tinha. A omissão da imprensa já tinha acontecido em Belém, há muitos anos. Decerto, por duas razões: preconceito contra essas duas crianças de famílias pobres e a férrea censura dos ditadores de plantão, Herodes e Vargas. Mas os jornalistas não perderiam por esperar. Passariam os próximos dois mil anos atrás de noticias sobre essas crianças. Uma palavra, uma foto, uma entrevista, pelo amor de Deus. O mais velho até prometeu voltar, mas não garantiu entrevista, nem disse onde e quando vai chegar. Só se pronuncia através de seu agente, Don Bergoglio.

Teria passado em branco o nascimento em Três Corações, não fosse a passagem pela cidade, de três profetas: Rodrigues, “o Unânime”, Nogueira, “o Poeta” e Mazzoni, o “Sábio”. Atraídos pela visão de um corpo flutuando e socando o ar, chegaram àquela casinha humilde com presentes: um globo terrestre, uma coroa e uma bola. Desde então, até o fim de suas vidas, lembravam aquela visita e louvavam aquela criança. Foram os primeiros mensageiros da boa nova: O Brasil acabava de ser reinventado.

Anos depois, perseguida e desprezada pela aristocracia local, a família Ramos de Nascimento juntou suas tralhas e partiu com destino à cidade paulista de Baurú, onde o menino começou a encantar-se com bolas de meia e campinhos de terra batida. Encantar-se e encantar. Ele, próprio, montou seu primeiro time com os amigos da rua. Calçou suas primeiras chuteiras, chutou a primeira bola de capotão e, mirradinho, com dez anos, já era o craque do Baquinho, o infantil do time que seu pai jogava. Virou atração na cidade. Campeão e artilheiro, aquele menino parecia ter futuro. 

Em meados de 1948, numa excursão ao Brasil, o fabuloso time argentino do River Plate acertou um amistoso com o Bauru Atlético Clube para um domingo a tarde. Pela manhã, tomando uma cachacinha na Praça da Matriz, Alfredo Di Stefano, o craque do time portenho, ficou sabendo do filho do centroavante do adversário da tarde. Matreiro, como todo argentino, achou quem o levasse até o garoto. Lá, chamou seu Ramos, mais conhecido como Dondinho, do lado e tascou: “llevo el chico y te hago millonario”. Quase Seu Dondinho aceita, mas alertados pela dono do boteco, chegaram esbaforidos o prefeito, o bispo, o presidente da Câmara, o juiz de paz, o Grão Mestre da Maçonaria, os presidentes do Rotary e do Lions e Dona Eny, a empresária mais bem sucedida de Bauru, também ela um ícone, a quem muito devemos. Enxotaram “La Saeta Rubia”, que, vingou-se na mesma tarde, atingindo, violentamente, o joelho direito de Dondinho após este marcar o terceiro gol de cabeça na estrondosa goleada de 5 x 0 do BAC sobre “La Maquina”. Dondinho nunca mais jogou futebol. Infelizmente, em razão de uma greve de jornalistas, não há registros de textos ou fotos sobre a memorável partida. Só vagas lembranças dos velhos bauruenses. 

Depois daí todo mundo conhece a história e não vale a pena repetir. Nessa semana. aquela criança está fazendo 80 anos. Há seis décadas o mundo não cansa de reverenciá-lo, mesmo passados 44 anos de sua última partida oficial.  Reis, rainhas, presidentes, primeiros ministros e papas posaram, sorridentes, ao seu lado. Cada um deles mantém essa foto em suas salas principais. à vista de todos. para se fazerem mais importantes do que são. Reagan, assim disse ao encontrá-lo: “Muito prazer, eu sou Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos. Você não precisa se apresentar porque todo mundo sabe quem é.”

Ganhou títulos, comendas, bustos, estátuas, nomes de avenidas, praças e estádios. Seu nome é uma das marcas mais conhecidas do mundo. Ídolo dos ídolos: Drummond, Lennon, Pasolini, Andy Warhol, Muhammad Ali, Mick Jagger, Michel Jordan, Stallone, entre outros.  Para o mundo é a referência do Brasil. Pelé é onipresente. Em qualquer lugar do mundo, alguém que se identifique brasileiro, ouvirá de volta: Pelé. E, distante de sua terra, morrendo de saudades, estufa o peito e responde: “É o nosso Rei”. 

Poderiam ser os argentinos a dizer isso, não fosse a ilustre comitiva bauruense liderada pela intrépida Dona Eny. Imaginaram o pesadelo?

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