O entrevistado dessa edição dispensa qualquer apresentação. É um dos mais queridos e admirados paulistanos de nossa História. Poucos conhecem tão bem a cidade como ele. Como grande parte dos paulistanos ilustres, não nasceu em São Paulo, o que é, absolutamente, irrelevante em sua trajetória. 

P:  Antes de tudo, agradecemos a gentileza em nos receber. Sabemos o quanto é ocupado e que essa é apenas a segunda entrevista que o senhor concede nos últimos 467 anos. A primeira foi dada ao nosso colega Mário Prata, que a publicou no livro “Uns Brasileiros” pela Editora Record em 2015. Como o senhor se sente atualmente?

R: Nada a agradecer. Tenho tempo de sobra aqui na eternidade.  Ainda mais depois de 2014, quando virei Santo, canonizado pelo Papa Francisco, um argentino que amamos amar, jesuíta como eu. Como santo, tenho alguns privilégios aqui no Céu, mas não gosto de abusar.

P: Antes de falarmos de nossa cidade, conte um pouco da sua vida, senhor……como devemos chamá-lo? Santidade? Excelência? Reverendo?

R: Ora, sem formalismos, por favor. Se quiser me agradar chame-me de Irmão José, ou amigo, que é melhor que irmão. Eu sou espanhol das Ilhas  Canárias, com ascendência judaica. Ainda assim, foi um primo de meu pai, o Ignacio de Loyola, quem fundou a Companhia de Jesus, onde me ordenei quando já estava no Brasil. Aos 14 anos, mudei-me para Portugal, onde fui estudar em Coimbra. De lá fui para o Brasil com 19 anos, onde passei os últimos 44 anos de minha vida.

P: Qual sua primeira impressão do Brasil, Irmão José?

R: Maravilhosa. Imagine um jovem de 19 anos chegando a Salvador. Deve ser o mesmo que os jovens de hoje sentem. Aquelas praias, aquela gente, aquele Sol, em tudo diferente, da formalíssima e carola Coimbra do século XVI. Cheguei, vi e gostei. Por mim, teria ficado por lá. Mas, foi melhor ter partido uns três meses depois.

P: Para onde?

R: Primeiro para São Vicente, depois Santo André da Borda do Campo, já no Planalto e, por fim, para os campos de Piratininga.  Na verdade, seguíamos as vontades do Manuel, que teimava em encontrar um lugar, onde pudesse catequizar os índios, à sua maneira, longe da luxúria e ganância dos portugueses, que preferiam o litoral para sua exploração predatória de madeira e de gente.

P: Agora sim, falemos de São Paulo, a nossa cidade. A palavra é sua, Irmão José. 

R: Por favor, São Paulo de Piratininga. Nunca me acostumei, nem nunca me referi à nossa cidade como apenas São Paulo. Na carta em que comuniquei aos superiores da Companhia a fundação do Colégio, apenas destaquei que isso acontecera no dia 25 de janeiro, data da conversão do Apóstolo Paulo. Nas mais de quatrocentas cartas que escrevi, sempre deixei claro que o Colégio São Paulo ficava em Piratininga. Depois, por pressão do Manuel, passamos a chamar a povoação de São Paulo de Piratininga. Não sei por que reduziram-lhe o nome. Era tão mais bonito.

P: Como foi a fundação?

R: Nada de extraordinário. Na verdade, já havia uma aglomeração de índios nas várzeas dos rios Tamanduateí e o Anhangabaú, no espaço hoje limitados pelo Largo São Bento e a Praça João Mendes. Construímos o Colégio no meio do caminho entre esses dois pontos. 25 de janeiro foi o dia da missa de sua inauguração.

P: E o seu papel em tudo isso?

R: A História superestimou minha participação. Eu era um menino de 19 anos com seis meses de Brasil. Toda a ideia era do Manuel. Acabei me destacando pela “superioridade de letrado” ( por favor, o termo não é meu; é de um biógrafo muito generoso). Uma das minhas funções era escrever as cartas, verdadeiras prestações de contas, aos superiores em Portugal. Foram tantas cartas, muitas delas preservadas até hoje, que se tornaram a crônica da fundação e dos primeiros anos de São Paulo de Piratininga. 

P: O Irmão José teria sido, então, um dos fundadores da literatura brasileira?

R: Sim. Disso- me orgulho. Deus há de me perdoar esse pecado capital. Não considero literatura a carta de Caminha. Um burocrata, um escrivão contando a El Rey os achados nessa terra e, por fim, praticando nepotismo. Eu não fiquei apenas nas cartas. Escrevi poemas, peças teatrais e até um romance épico, o primeiro em Língua Portuguesa, publicado em Coimbra em 1563, nove anos antes de “ Os Lusíadas”. Tinha facilidade com línguas.  Falava Espanhol, Português e Latim. Aqui aprendi o tupi e escrevi a primeira gramática dessa língua. A censura régia de Portugal segurou a publicação até 1595, dois anos antes da minha morte física. Dom Pedro II tinha um exemplar da primeira edição.  Doou para a nossa Biblioteca Nacional.  Está lá até hoje. De novo, cometi o pecado do orgulho……xiiii.

P: O senhor pode, já é santo. Que romance épico foi este que o Irmão comentou? 

R: Posso não, um exemplo vale mil pregações.  O livro chamava-se “Os feitos de Mem de Sá”, de quem fui amigo e parceiro nas escaramuças com os tamoios e os franceses.  Ao final, também com a minha ajuda e de Manoel, um sobrinho do Mem, chamado Estácio, fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Fundamos e dirigimos o primeiro Colégio. O Estácio virou nome de escola de samba e eu sequer fui lembrado para um enredo, muito menos um samba. Os cariocas esqueceram de mim. Outro pecado, a inveja. Seja misericordioso comigo, meu Senhor.

P: Como era sua relação com o Padre Manoel, o da Nóbrega?

R: Muito boa. Apesar da diferença de idade e temperamento, fomos muito amigos. Passamos grandes perrengues juntos quando tentamos acordo de paz com os tamoios. Uma ocasião, acredite, tive que atravessar um rio com ele nas costas. E olha que eu tinha um sério problema nas costas. Andava meio curvado desde que caí de uma escada ainda lá em Coimbra.  Depois fomos reféns dos índios. Ou melhor, eu fui refém.  Os índios liberaram Nóbrega com a condição que eu ficasse até sua volta.  Foram três longos meses, mas úteis. Lá escrevi a obra prima da minha vida.

P: Andou muito pelos campos de Piratininga. O que viu?

R: Andei muito, vi de tudo. Tibiriçá, meu grande amigo e protetor da povoação, levava-me em sua canoa para pregar para aglomerações de ocas bem distantes do Colégio.  O que Tibiriçá tinha de bom e leal, seu genro, João Ramalho tinha de ruim. Ainda bem que preferia ficar em Santo André. Só se fixou por aqui depois da minha partida.  Uma vez navegamos cinco léguas e aportamos na aldeia de Ururaí. Tinha sido formada alguns anos antes, por alguns índios, que se afastaram de nossa povoação. Eles se recusavam a seguir nossas orientações e não deixavam seus filhos estudarem no Colégio. Mesmo assim,  não desistimos deles.

P: O que aconteceu com essa aglomeração em Ururaí?

R.: Estagnou. Não sei se foi porque escolheram outro santo como patrono ou se foi porque nunca gostaram de estudar. Até prosperaram um pouco entre os anos 40 e 70 do século XX, mas logo em seguida retornou ao seu estado normal: bruto e tribal. Hoje, perambulam por um calçadão rústico e mal frequentado e espremem-se em trens e ônibus para vir trabalhar em Piratininga. Uma pena. Tudo por causa da teimosia de Piquerobi.

P: Irmão José, suas considerações finais sobre nosso tempo e nossa cidade.

R: Como santo, sou atemporal. Sinto-me tão bem neste tempo e nesta cidade como naquela dos primeiros anos. Gosto de passear pelo meu ambiente natural, que vocês chamam de Centro Velho. Nem precisa perguntar meu lugar favorito: o Pátio do velho Colégio, com aquele café gostoso, aquele museu lindo. Bem que podia ter um exemplar da minha gramática tupi lá. Vou ao Mosteiro, rezo na Catedral, levo esbarrões na São Bento e, às vezes, vou na 25 de Março. É um sacrifício a volta por causa da Ladeira Porto Geral.

Gosto da agitação desses tempos, mas não curto redes sociais. Raramente entro na internet. Quando entro é pra ver o blog de vocês: o Outros Olhares. Gostei do novo visual. Agora vou comentar mais. Tem tanta coisa interessante, artigos deliciosos, principalmente daquele menino que escreve às segundas feiras. Se eu fosse vocês,  dava mais espaço  prá ele. É o mais brilhante e talentoso dos três colunistas. 

Antes de voltar para Ubatuba, onde passo o verão e onde ficava a Praia de Iperoigue, em cujas areias escrevi o “Poema à Virgem” (depois, de memória, passei para o papel e foi editado em Latim e Português), gostaria de mandar um abraço para meus amigos de Anchieta no Espírito Santo, onde morei meus últimos anos e dei o último suspiro. Hoje, não suspiro mais. Levito. Até a próxima. 

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Elena
Elena
3 anos atrás

Sensacional !

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