Cristina Bonafé

O sorriso, como uma surpresa, me espera do outro lado do muro. Pela manhã, ao abrir o portão de casa e sair à rua, recebo, do trabalhador com a vassoura na mão e vestido todo de cor laranja, um irradiante cumprimento com voz repleta de energia: “Bom dia! Lindo dia de sol hoje!” 

O gari cumpre seu ritual de repetir com a vassoura o vai-e-vem pelas calçadas, até eliminar os detritos jogados no chão. Este varredor, entretanto, vai além, varre e purifica também o ar com o som de efusivas palavras de otimismo.

Mas o inusitado maior não está na sua boca. Vem de suas mãos. O homem investe: “Você gosta de poesia?” Antes que eu responda com o óbvio sim, faz surgir um livro encadernado em brochura de singela capa amarela, como um mágico a tirar o coelho da cartola. “Escrevo poesia e tenho este livro para vender, fala de amor”. 

O inusitado perdura, do bolso mágico surge outro livro, numa brochura de capa ilustrada por um colorido jardim. Acrescenta: “Escrevi também este para crianças”.

Folheio e leio. Texto simples como ele. Simples, como sorrir para o dia de sol. Simples como dançar com a vassoura e encontrar a princesa e seus gnomos. Simples como o ato imediato que faço de lhe pagar os dez reais cobrados por cada livro.

A curiosidade me aguça a lhe inquirir: “Em que hora você escreve?” Ele, como um escritor experiente, responde: “Tenho um caderninho no meu bolso e escrevo toda hora que posso, no dia todo”.

Olho para ele e me pergunto: afinal, o ofício deste homem é de gari ou de escritor? Ele próprio resolve a dicotomia: assina sua obra como “Juvenal, gari-poeta”. Sim, Juvenal é um escritor na arte de traduzir a vida das ruas. A vassoura varre e lhe abre o caminho para que os olhos possam enxergar o que está imerso no pó, no barro, no fundo do chão.

Segue pelas ruas, tanto a limpar como a preencher a cidade com fantasia e arte. Varre o lixo e recicla a alma. Realiza a alquimia, pó e papel amassado viram poemas redigidos no papel dos sonhos. 

E sonho, nesta manhã, com um mundo mais humano. Um mundo com a arte a varrer pesares, brotar emoções e afetos, derrubar muros.

Cristina Bonafé

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Anônimo
Anônimo
3 anos atrás

Lindo, Cris!!❤

Odilia
Odilia
3 anos atrás
Responder a  Anônimo

Encantador!!

WILMA
WILMA
3 anos atrás
Responder a  Odilia

Cristina Bonafé, um nome para não esquecer quando buscamos uma leitura singela e surpreendente. Prazer em conhecê -la!

Kassia
Kassia
3 anos atrás

Cris, tudo isso só foi possível porque você conseguiu transpor a invisibilidade do gari e estabelecida a conexão, tudo flui!
Parabéns pela sua sensibilidade! É um dom reservado à poucos. Abraço

Odilia
Odilia
3 anos atrás
Responder a  Kassia

Excelente!!

Cristina Bonafé
Cristina Bonafé
3 anos atrás
Responder a  Odilia

Grata pelo comentário.
Grande satisfação também para mim estar presente neste Blog e com seus leitores.

Odilia D'Angelo
Odilia D'Angelo
3 anos atrás

Adorei

Elza Santos
Elza Santos
3 anos atrás

Que texto maravilhoso! Assim deveriamos ver, ler poesia. Fiquei encantada.

Odilia
Odilia
3 anos atrás
Responder a  Elza Santos

Adorei!!

Odilia
Odilia
3 anos atrás
Responder a  Odilia

Excelente!!

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